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ARTIGO - Quando a cheia chega no auge da seca: o que o clima extremo revela sobre a logística brasileira? = Por Fabiano Lorenzi
A
Amazônia enfrenta uma das maiores cheias dos últimos anos. Mais de 500
mil pessoas foram impactadas e mais da metade do estado do Amazonas está
em situação de emergência. Tudo isso em pleno mês de julho, o mês em
que as águas do Rio Negro tradicionalmente começam a recuar. O cenário
oposto indica um sinal claro de que o ciclo natural da região já não
segue o mesmo ritmo: o nível da água em Manaus continua subindo e
atingiu 29,04 metros na última sexta-feira, marca que não era registrada
desde 2014, segundo o Porto da capital.
As
imagens impressionantes da cidade de Itacoatiara inundada são o retrato
mais recente de como os extremos climáticos vêm desafiando nossa
infraestrutura. A cheia histórica transformou a terceira maior cidade do
Amazonas em um retrato dramático do colapso climático na região. A 270
km de Manaus, a cidade teve ruas inteiras submersas, casas invadidas
pelas águas e centenas de famílias obrigadas a deixar seus lares.
Escolas fecharam, o comércio parou e bairros inteiros se tornaram
intransitáveis. Itacoatiara virou rio.
A
tragédia é humanitária e, dentro de toda sua complexidade, o impacto
atinge em cheio a logística da região. Com um porto estratégico para o
escoamento de combustíveis, alimentos e cargas essenciais, Itacoatiara é
elo vital na rota fluvial Manaus - Itacoatiara - Santarém, hoje
comprometida pelo avanço implacável das águas. Em um território onde os
rios são as estradas, qualquer alteração abrupta no fluxo dos rios
significa também a interrupção do abastecimento básico para milhões de
pessoas.
Se
hoje a cheia domina os noticiários, é preciso lembrar que o outro lado
da moeda. A seca extrema também traz impactos severos à logística,
sobretudo no Norte e Centro-Oeste do país. Vista como um dos principais
desafios logísticos do país, a seca do Rio Amazonas e de seus afluentes
impede a passagem de embarcações e isola cidades por tempo
indeterminado. Mais de 1.400 municípios declararam situação de
emergência em 2024, classificadas em nível extremo ou severo.
Itacoatiara, hoje submersa pela cheia histórica dos últimos 10 anos, foi
um dos principais portos de apoio durante a seca extrema passada.
Naquele período, quando o acesso fluvial a Manaus ficou comprometido, o
terminal da cidade operou como ponto estratégico de transbordo,
permitindo que cargas fossem recebidas por balsas menores e, assim,
garantindo o abastecimento de combustíveis e insumos à capital
amazonense.
Em
dois anos, a logística da região Norte enfrenta dois extremos
históricos, e isso levanta um ponto de atenção: o clima, antes
minimamente previsível, não é mais uma variável controlável, e a
infraestrutura logística brasileira vai precisar se preparar para essa
nova realidade de extremos. Os extremos deixaram de ser exceção,
portanto, pensar em soluções logísticas resilientes e adaptáveis deixa
de ser uma escolha e passa a ser uma necessidade estratégica.
A
intensidade da estiagem coloca em xeque a capacidade de resposta da
infraestrutura logística ao paralisar completamente o transporte fluvial
em várias regiões. Já a intensidade da cheia, embora temporariamente
mantenha os rios navegáveis, desorganiza rotas, inunda centros
logísticos e isola populações inteiras, criando gargalos severos e
imprevisíveis. São impactos distintos, mas ambos reforçam a urgência de
uma matriz logística resiliente, capaz de se adaptar com agilidade a
cenários extremos e fora do padrão.
Além
dos caminhos aquáticos por onde as cargas percorrem, a malha rodoviária
da região Norte é uma alternativa, mas apresenta inúmeras limitações de
infraestrutura. Para se ter uma ideia, a Confederação Nacional do
Transporte (CNT) revelou em 2021 que os custos operacionais do modal
terrestre são 40,4% mais caros nesta região, se comparado ao custo
estimado, caso as rodovias estivessem em boas condições.
Fato
é: a cabotagem é um dos principais modais quando estamos falando em
abastecimento de suprimentos em regiões extremas do Brasil. Ela pode
reduzir em até 30% os custos logísticos por tonelada transportada. Menos
impactada pela oscilação dos rios, a solução conecta os principais
portos do país ao Norte do Brasil, assegurando o fluxo de cargas de
forma contínua. Como resultado, empresas e distribuidoras optam cada vez
mais por transportar mercadorias do Centro-Oeste por rodovias até
portos estratégicos, de onde seguem por navio até o destino final. No
entanto, ainda é um desafio para qualquer modal enfrentar o que a
Amazônia tem apresentado como resposta às alterações do clima.
A
multimodalidade - união de vários modais de transporte - pode ser a
saída para a logística em todo território nacional em um cenário futuro
de extremos climáticos. Ao permitir que cada modal atue de forma
complementar, explorando seus pontos fortes e compensando fragilidades
operacionais, o setor terá mais margem de manobra estratégica para
momentos de crise.
Países
com vocação logística reconhecida já operam com sistemas multimodais
integrados há décadas. Na Alemanha, por exemplo, o transporte de cargas
combina com eficiência rodovias, ferrovias e hidrovias, especialmente ao
longo do rio Reno, criando um fluxo contínuo de mercadorias entre
portos e centros industriais. Nos Estados Unidos, os grandes corredores
logísticos interligam caminhões, trens e embarcações fluviais, com
destaque para o uso do rio Mississipi e a malha ferroviária que conecta
os estados do Centro-Oeste aos portos do Golfo. Já na China, a
integração entre ferrovias de alta capacidade, navegação costeira e
portos de águas profundas é central para o escoamento da produção
interna até hubs de exportação como Xangai e Shenzhen.
Investir em multimodalidade não é uma aposta na previsibilidade. É , justamente, uma resposta à sua ausência. Em um cenário de instabilidade climática e choques logísticos, a integração entre diferentes modais permite desenhar rotas alternativas, adaptar operações em tempo real e manter o abastecimento mesmo quando um elo da cadeia é comprometido. Em países de dimensões continentais como o Brasil, a multimodalidade não é um luxo logístico, é uma necessidade estratégica para garantir resiliência, continuidade e eficiência diante do imprevisível - ou estaremos sempre à mercê do próximo colapso.
Fabiano Lorenzi é CEO da Norcoast, empresa brasileira de navegação costeira. Com mais de 20 anos de experiência em infraestrutura de transportes, o executivo acumula sólida experiência em gestão de logística, tendo sido, ao longo dos últimos três anos, diretor comercial e operacional da Norsul. Além disso, atuou em outras importantes empresas do setor industrial do país, como VLI, Vale e Log-In.