Conhecedor das trilhas no meio da mata, Siran se viu perdido depois da chegada do agronegócio e, com ele, do desmatamento. Foto: Tatiana Merlino
ILHADOS E CERCADOS PELO AGRONEGÓCIO, QUILOMBOLAS AGUARDAM TITULAÇÃO DE TERRITÓRIO EM TOCANTINS
Por João Peres,Tatiana Merlino, Julia Dolce , de Almas e Dianópolis (TO) e de São Paulo (SP)
Dez anos após assinatura de decreto do Matopiba, integrantes de povos tradicionais sofrem com desmatamento, grilagem, ameaças, agrotóxicos e invasão de insetos.
Siran Nunes de Souza tem 42 anos e, “desde que se conhece por gente”, mora na comunidade quilombola Baião, no município de Almas, no Tocantins. Sua infância foi marcada pela fartura dos frutos do Cerrado, como pequi, mangaba, caju, murici, buriti. Cavalos e bois viviam soltos: cerca era uma palavra que não existia no vocabulário.
Quando iam para a cidade, o transporte era feito a pé, a cavalo ou em carro de boi, na trilha aberta no meio da mata. No caminho, se tivessem fome, paravam para comer farofa. Siran conhecia de olhos fechados as estradas que ligavam as comunidades. Os mesmos olhos que, abertos, na infância, miravam o céu nas noites de calor, enquanto ouvia histórias de seus avós, das quais nunca mais se esqueceu.
Muitos anos depois, Siran se perdeu nessa mesma trilha à cidade. “Meu deus, onde estou? Que lugar é esse? Eu não sabia onde estava, perto de casa, ou no meio da estrada”, conta. Ele lembra como se fosse hoje: era 2016, período em que houve um avanço do desmatamento ao redor e dentro do território onde vivem os quilombolas. A paisagem da sua infância havia mudado drasticamente por conta da derrubada da floresta. “Quando a gente vê esse deserto que eles abriram aí com o correntão, dá vontade de chorar”, comenta.
A comunidade quilombola do Baião é uma das quatro que existem na região: as outras são Poço Dantas e Lajeado, a segunda situada no município de Dianópolis, e que fica na outra margem do principal rio da região, o Manuel Alves; e a comunidade São Joaquim, na cidade vizinha de Porto Alegre do Tocantins. A viagem de quase 300 quilômetros entre Palmas — nosso ponto de partida em Tocantins — e Almas é monótona, com fazendas atrás de fazendas. O Cerrado, bioma de 90% do estado, é pouco visível nas estradas: muito já foi desmatado para ser transformado em áreas de produção de soja, de gado ou de ambos.
Combinamos um encontro com o engenheiro agrônomo Laelson Ribeiro de Souza, quilombola de Baião e integrante da Coordenação Estadual das Comunidades Quilombolas do Tocantins (COEQTO), que nos acompanharia nas visitas aos territórios. Perguntamos a ele qual é a distância de Almas a Baião: “Vocês vão saber quando chegarem. É o único ponto verde em meio a fazendas. Hoje, a comunidade virou uma ilha. Somos arrodeados de fazendas, desmatamento.”
Comunidades quilombolas existem nas cidades de Almas, Dianópolis e Porto Alegre do Tocantins (TO). Historicamente, a região de Almas e Dianópolis é dominada por fazendeiros. Durante a ditadura civil-militar (1964-1985), projetos de “desenvolvimento” foram implementados na região sudeste do Tocantins.
“Quando se criou o Matopiba, começaram a vir esses grandes fazendeiros. Hoje, existem vários aqui dentro. Não é um território redondinho, a gente ficou meio que fatiado”, conta Laelson. Rodando entre as comunidades, fomos entendendo esse fatiamento: o que lá atrás era uma mata que conectava esses povoados, hoje são estradas, barragem, sedes de empresas e latifúndios.
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