
Foto: Divulgação / O Candeeiro/Arquivo
Do Rio a Belém: ficção científica atravessa mistérios da realidade brasileira
Entre o Círio de Nazaré, em Belém, e um cenário cyberpunk do Rio de Janeiro, David O. Silveira Jr. publica uma narrativa de ficção científica sobre os diferentes “brasis” que compõem o Brasil. Com Instinto de Eternidade, ele utiliza de uma aparente contradição da cultura, sempre dividida entre o misticismo e a racionalidade, para construir uma aventura que faz os leitores questionarem o futuro da humanidade.
No enredo, Damiel Bastos é um jovem inquieto que começa a viver fenômenos enigmáticos. Quando seu pai, um reverendo local, é acusado de uma tentativa de assassinato, o protagonista mergulha em uma jornada para provar a inocência dele. A aventura, porém, o levará a conhecer um mundo diferente e futurista, moldado por alta tecnologia e inteligência artificial.
“Meu sonho é que o livro ajude a popularizar a ficção científica no Brasil e inspire as pessoas a assumirem a responsabilidade de cocriar o futuro que desejam. Podemos assistir nossa extinção ou dar um salto para as estrelas. A diferença entre colapso e transcendência talvez esteja na nossa capacidade de colaborar com quem pensa diferente”, explica o autor. Abaixo, você confere a entrevista completa:
1. O livro mistura ciência, mitologia e espiritualidade. O que te motivou a construir essa ponte entre fé e tecnologia?
R: Sempre me fascinou essa busca por sentido que todos temos. Como muitos brasileiros, eu cresci no universo da fé, e depois mergulhei na ciência e na razão como fontes da verdade. Percebi que cada perspectiva responde perguntas diferentes, mas também deixa vazios específicos. A fé pode dar consolo, mas, às vezes, nos faz ficar esperando por milagres e nos conformar com a realidade. Já a ciência e a razão avançam rápido, querendo transformar o mundo, mas ainda são incompletas diante do mistério de existir. Foi aí que me apaixonei pela ideia do "mito do planeta" de Joseph Campbell, uma nova mitologia que pudesse unir espiritualidade, imaginação e tecnologia. E acredito que as inteligências artificiais vão ter um papel central nisso. Instinto de Eternidade nasceu desse desejo de criar uma ponte entre mundos, contar uma boa história e despertar no leitor a vontade de imaginar, e construir, um futuro diferente e otimista, mesmo que isso demande grandes sacrifícios.
2. Como foi o processo de desenvolvimento do personagem Damiel Bastos? Há algo de autobiográfico nele?
R: Sem dúvida. Damiel nasceu da criança que eu fui, mas também representa quem cresceu cercado por certezas religiosas e expectativas sociais, mas que, em algum momento, começou a questionar tudo. A jornada dele é também a minha forma de explorar como a singularidade tecnológica pode vir a transformar nossa relação com o sagrado, principalmente com o advento das superinteligências artificiais. No fundo, Damiel é um espelho de quem sente que foi moldado pelas expectativas da sociedade e das tradições, mas decide fazer a difícil escolha de não seguir esse molde e construir algo novo. É sobre ter coragem de questionar, de sair da zona de conforto e buscar suas próprias respostas, sua própria identidade.
3. Você cresceu em uma comunidade cristã e hoje investiga outras formas de espiritualidade. Como essa trajetória influenciou sua narrativa?
R: Essa trajetória é o eixo da narrativa. Ter sido formado em uma fé genuína e depois passar por um colapso espiritual me permitiu escrever de um lugar honesto, entre o encantamento e o ceticismo. Isso me ajudou a criar empatia tanto pela crença quanto pelo ceticismo, a ver a luz e a escuridão que existe em cada perspectiva. Me deu também curiosidade para conhecer todas as outras crenças sagradas e mitologias da humanidade. Como Campbell, acredito que há uma sabedoria essencial nos mitos, mesmo que não sejam literais. Em Instinto de Eternidade, explorei como podemos ressignificar nossas crenças, sem descartá-las, mas revisando-as à luz do nosso tempo e do nosso conhecimento atual.
4. O Brasil aparece no livro de forma simbólica e sensorial, com destaque para o subúrbio carioca e o Círio de Nazaré. Qual é a importância dessa ambientação para a trama?
R: Costumo dizer que “o Brasil são muitos Brasis”, e quis mostrar que o Rio também é cyberpunk. Não precisamos ter sempre Nova York ou Londres como cenários de ficção científica. Ao invés do "Rio turístico", proponho um tour pelo subúrbio carioca, onde fé e ceticismo convivem no dia a dia. Já o Círio de Nazaré, com sua força popular e sincretismo caboclo, é um grande símbolo da pluralidade brasileira. Por ser a maior procissão católica do mundo, vira o palco perfeito para um grande evento com potencial de impacto nacional e global. O épico e o cyberpunk também acontecem aqui, no calor tropical, na contradição e na fé do nosso próprio país.
5. A obra levou quase duas décadas de pesquisa. O que foi mais desafiador nesse processo de maturação do projeto?
R: O maior desafio foi lidar com temas sensíveis como fé e ceticismo, que costumam dividir opiniões. Queria mostrar que toda crença (religiosa, científica, filosófica ou política) sempre carrega luzes e sombras, que são reflexos da própria condição humana. O livro passou por muitas versões: algumas mais racionais, outras mais místicas. No fim, ao invés de escolher um lado, integrei os dois. Também precisei vencer o medo de me expor. Esse livro é uma ficção, mas é também um espelho das minhas perguntas mais íntimas. A lapidação levou anos porque eu não queria só contar uma boa história, queria que ela fosse verdadeira, mesmo sendo inventada. Esse tempo também serviu para maturar o universo e os personagens, que hoje sustentam uma série inteira. O primeiro livro tem começo, meio e fim, mas já estou escrevendo os próximos dois.
6. Que tipo de reflexão ou transformação você espera provocar nos leitores com Instinto de Eternidade?
R: No mínimo, espero que o leitor se divirta e sinta que usou bem o tempo com um entretenimento de qualidade. Mas, no fundo, quero levá-lo a questionar suas certezas e cultivar mais curiosidade e empatia pelas crenças dos outros. Em um mundo polarizado, precisamos disso urgentemente. Meu sonho é que Instinto de Eternidade ajude a popularizar a ficção científica no Brasil e inspire as pessoas a assumirem a responsabilidade de cocriar o futuro que desejam. Podemos assistir nossa extinção ou dar um salto para as estrelas. A diferença entre colapso e transcendência talvez esteja na nossa capacidade de colaborar com quem pensa diferente (sejam pessoas de outras crenças, ou até novas entidades digitais que venham a existir em breve!). E o desafio de construir algo que una ciência, tecnologia e espiritualidade pode ser um bom catalisador dessa colaboração. Quero que cada leitor se sinta inspirado a protagonizar um novo mito.
Sobre o autor: David Oliveira Silveira Junior é designer de produtos, gestor de inovação tecnológica e artista visual. Formado pela UFRJ e com pós-graduação pela UERJ, atua no desenvolvimento de soluções digitais complexas, incluindo projetos com realidade aumentada e simulações em realidade virtual. Cresceu em uma comunidade cristã pentecostal e, com o tempo, passou a investigar a espiritualidade sob diversas perspectivas filosóficas e simbólicas. Com influência de autores como Joseph Campbell, sua escrita propõe a construção de uma mitologia própria, um diálogo entre fé, ciência e arte. Instinto de Eternidade é sua estreia na literatura.
Por VICTÓRIA GEARINI |