Foto: Divulgação/Raillander
ARTIGO - ITAMAR VIEIRA JÚNIOR EM CORAÇÃO SEM MEDO RECOLOCA O BRASIL NO DIVÃ = Por Francisco Neto
O retorno da história
O novo romance de Itamar Vieira Júnior, Coração sem medo, recoloca o Brasil no divã. Rita Preta, personagem central, repete no âmago a história de outras mulheres de sua família. Sua avó, Carmelita, fugiu da casa materna para nunca mais voltar e Donana, sua bisavó, também criou seus filhos como mãe solo, embora por motivos diferentes. Rita Preta é uma caixa de supermercado que cria três filhos sozinha e que viveu sem conhecer o pai, foi abandona pela mãe, perdeu seus irmãos e foi mandada pela avó para trabalhar na cidade como empregada em casa de família.
Cid – cujo nome verdadeiro é Alcides Alves das Virgens, o primogênito de Rita Preta, desapareceu como também um dia desapareceu Zeca Chapéu Grande, seu ancestral, em Torto Arado, e filho mais velho de Donana. Indo mais além, retoma, pelo sobrenome paterno, um antepassado histórico, Luiz Gonzaga das Virgens, que foi enforcado e esquartejado em Salvador, Bahia, em 8 de novembro de 1799. A narrativa mostra, na verdade, como a história da família de Rita Preta se entrelaça à própria história do Brasil, revelando que não há destino individual que não esteja marcado pela trama coletiva.
O destino é um outro nome da repetição
Aurora Bernadini, crítica literária, tradutora e professora aposentada da Universidade de São Paulo, afirmou recentemente, em entrevista à Folha de São Paulo, de 30 de agosto de 2025, que a escravidão não deveria continuar servindo de mote à literatura contemporânea, pois o passado não poderia repercutir no presente. Sigmund Freud, porém, em seu ensaio Além do princípio do prazer, de 1920, já afirmava que ninguém escapa da compulsão à repetição — essa força que atua no psiquismo humano, também conhecida como pulsão de morte. Essa repetição se traduz em uma tendência à mesmice, à inércia e, no final das contas, à morte. Somos feitos de histórias: da família, da comunidade, da sociedade. E repetimos, inconscientemente, roteiros bons e ruins dessas histórias que nos antecedem. Essa lógica não se aplica apenas às pessoas, mas também as sociedades.
A esse tipo repetição, o psicanalista francês Jacques Lacan chama de repetição idiota – no sentido de idêntico a si mesmo, repetição do mesmo. Freud já indicava, desde 1914, que uma das maneiras de romper o circuito mortífero da repetição do mesmo é contar, recontar e, por fim, elaborar nossas histórias, aquelas que causa dor e sofrimento. A psicanálise nos ensina que revisitar o passado é condição para narrá-lo de outras formas, abrindo espaço, como ensina explica Jorge Forbes, para versões diferentes, mais favoráveis à vida. Mas esse processo só produz efeitos se houver quem escute, valide e ofereça condições para que essas novas narrativas possam surgir. Sem um ouvido atento e interessado, dificilmente alguém encontrará meios de ressignificar sua trajetória e superar impasses e sofrimentos.
A herança escravocrata e patriarcal
Rita Preta e seus três filhos são metáfora de muitas famílias brasileiras que ainda lutam contra a força da herança da escravidão e do patriarcado — traumas que o país não elaborou suficientemente. Enquanto não trabalharmos suficientemente essas páginas de nossa história, não encontraremos lucidez necessária para construção de outras histórias possíveis e mais interessantes, sobretudo para pessoas negras, mulheres, crianças e adolescentes, ainda tão maltratados em nosso Brasil. Histórias invisibilizadas precisam ser ouvidas e legitimadas, para que possam abrir possibilidades de ressignificação e futuros a se inventar – bons e justos para todos.
Itamar Vieira Júnior, com Coração sem medo, nos convoca, como já o fizeram outros grandes escritores e escritoras, a essa escuta. Que tenhamos coragem para falar dessas temáticas com honestidade, livremente e sem censura — única regra que Freud estabeleceu para que uma psicanálise produzisse efeito. Que a leitura e as discussões em torno de Coração sem medo sejam, de fato, experiências transformadoras para os(as) leitores(as) e para o Brasil.
Francisco Neto Pereira Pinto é Escritor e Psicanalista. Doutor em Letras, é Professor Permanente do Programa de Pós-Graduação em Linguística e Literatura da Universidade Federal do Norte do Tocantins. Autor de À beira do Araguaia.
