
Foto: Divulgação / Arquivo O Candeeiro
ARTIGO - O atleta paga a conta enquanto o clube lava as mãos - Por João Antonio de Albuquerque e Souza
O doping no esporte é uma questão delicada, que envolve tanto a saúde do atleta quanto a ética do jogo. Mas e quando a substância proibida encontrada no corpo do atleta vem de um tratamento médico indicado pelo próprio clube? Embora a legislação antidoping imponha ao atleta a obrigação de garantir que nenhuma substância proibida esteja em seu organismo, a responsabilidade do clube não pode ser ignorada.
Lesões fazem parte da vida esportiva, e a busca por uma recuperação rápida pode levar clubes a recorrerem a métodos questionáveis. Médicos indicam tratamentos, aplicam substâncias e garantem sua eficácia, mas nem sempre informam os riscos. Muitos atletas, especialmente os mais jovens, confiam cegamente no corpo médico do clube e não têm o conhecimento técnico para questionar essas decisões. Quando um exame antidoping testa positivo, tanto o atleta como o médico que prescreveu a substância ou tratamento proibido podem ser suspensos por longos períodos. Nesse caso, o atleta responderá pela presença da substância em seu organismo; já o médico pode responder pela violação de administração. Eventual punição ao atleta possui consequência gravíssimas em sua carreira, com impedimento de atuação profissional - não pode nem treinar no esporte, suspensão de salários, patrocínios e inúmeros danos à imagem. Por outro lado, o médico, quando punido, fica afastado de atuar apenas no esporte, podendo clinicar livremente em outras áreas.
Em 2022, a Autoridade Brasileira de Controle de Dopagem (ABCD) intensificou seus esforços para garantir a integridade no esporte, realizando testes antidoping em diversas modalidades. Até 27 de dezembro daquele ano, foram coletadas quase 5 mil amostras, sendo a maioria de urina (4.570) e uma parcela menor de sangue (410). A fiscalização abrangeu 33 esportes e 70 modalidades, alcançando mais de 2 mil atletas. Para viabilizar esse monitoramento, mais de 1.600 missões de controle foram conduzidas, reforçando a importância da luta contra o uso de substâncias proibidas e a necessidade de manter o esporte justo e seguro para todos os competidores.
A questão aqui não é se o atleta deve ser punido, pois a regra antidopagem é clara: ele é responsável por tudo o que entra no seu organismo. O problema é que, na esfera civil, o clube tem um papel que não pode ser ignorado. Se o departamento médico indicou ou administrou a substância proibida, a equipe deve responder pelos prejuízos causados. Afinal, o atleta perde não apenas meses ou anos de sua carreira, mas também salários, contratos e oportunidades, sem falar no impacto emocional e na degradação de sua imagem.
Os clubes não podem se esconder atrás da responsabilidade estrita do atleta. Há uma relação de subordinação trabalhista entre o jogador e a equipe, o que torna ainda mais evidente a necessidade de responsabilização. Quando um funcionário de qualquer outra profissão sofre prejuízos por um erro direto de seu empregador, ele tem direito à reparação. No esporte, essa lógica deveria valer da mesma forma. O clube, como empregador, deve assumir as consequências dos erros cometidos pelo seu próprio departamento médico.
A realidade é que a falha, muitas vezes, começa dentro da estrutura do clube. Médicos indicam tratamentos sem o devido cuidado, dirigentes fazem pressão por uma recuperação rápida e o atleta, que deveria ser protegido, acaba sendo exposto. E quando o exame antidoping dá positivo, a punição esportiva é apenas o começo dos prejuízos.
A discussão precisa ir além do tribunal antidopagem. A punição ao atleta pode até ser inevitável sob o regulamento vigente, mas os danos materiais e morais que ele sofre não podem ser ignorados. Se um clube expõe seu jogador a essa situação, ele deve responder na Justiça pelo prejuízo causado. A carreira de um atleta não pode ser tratada como um recurso descartável, onde apenas ele paga o preço pelos erros de uma estrutura que deveria protegê-lo.
A solução passa por maior responsabilidade dos clubes e uma revisão das práticas médicas dentro do esporte. Profissionais que tratam atletas precisam estar plenamente cientes das regras antidoping e dos riscos envolvidos. Clubes devem garantir que seus departamentos médicos atuem com ética e segurança, evitando que jogadores sejam punidos por decisões que não tomaram.
No fim das contas, o futuro do esporte depende de uma gestão mais responsável. O atleta deve ser responsável pelo que consome, mas quando o erro vem de dentro do próprio clube, ele deve ser reparado pelos inúmeros prejuízos que a sua carreira e reputação suportarão.. Se a substância proibida foi recomendada, administrada e acompanhada pelo clube, então ele também deve pagar essa conta.
João Antonio de Albuquerque e Souza é atleta olímpico, graduado em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e mestre em Direito e Justiça Social pela UFRGS. Atualmente, é Presidente do Tribunal de Justiça Desportiva Antidopagem (TJD-AD) e sócio fundador do escritório Albuquerque e Souza. Com expertise em Direito Civil, Trabalhista e Desportivo, sua atuação abrange temas como contratos e responsabilidade civil.