Professor Ives Gandra - Foto - Andreia Tarelow
ARTIGO - O STF em debate = Por Ives Gandra Martins
Após a apresentação do excelente trabalho "Custo da insegurança jurídica”, trazido pelo professor José Pastore, presidente do Conselho de Emprego e Relações do Trabalho da Fecomercio-SP, durante evento realizado na sede da Entidade, em conjunto com o Conselho Superior de Direito, que tenho a honra de presidir, fiz aos presentes algumas considerações, que compartilho com os amigos leitores.
A primeira foi sobre a filosofia do atual governo e a presente
composição do Tribunal Superior do Trabalho. Temos, indiscutivelmente,
por parte do governo do presidente Lula, uma certa resistência à
economia de mercado e, ao mesmo tempo, uma crença, mais do que meramente
ideológica, convicção conformada por visão pessoal e não pelas regras
de mercado, de que a economia funciona melhor com as empresas estatais.
Nessas ele tem colocado não especialistas, mas seus amigos, que pensam
da mesma forma.
Vemos a campanha feita pelo governo no sentido de reestatização
de determinadas empresas e, ao mesmo tempo, a forma como cargos de
empresas estatais, principalmente a Petrobras, têm sido, novamente,
loteados, como eram no passado. Sabemos perfeitamente que, quando a
empresa não pertence aos donos, nem aos acionistas, ou a ninguém em
particular, torna-se campo fértil para a corrupção.
Essa mentalidade também levou à indicação de Ministros do Poder
Judiciário. A realidade, hoje, no Tribunal Superior do Trabalho, é que
nós temos 27 Ministros, dos quais 14 estão nitidamente alinhados com a
filosofia do presidente Lula, e 13 ministros favoráveis à economia de
mercado, os quais atuaram para que a reforma trabalhista fosse
concretizada, razão pela qual a resistência do TST a seguir a reforma
obriga o Supremo Tribunal Federal a ser também uma espécie de revisor
das decisões tomadas pelo TST.
Aquela observação com a qual o professor José Pastore iniciou, de
que muitas vezes o juiz se coloca diante do problema entre decidir de
acordo com a lei ou de acordo com o humanismo, é algo que tive a
oportunidade de expor ao Ministro Luís Roberto Barroso, em evento na
FIESP. A função do Supremo e do Poder Judiciário é respeitar a lei,
mesmo que ela não agrade.
Recordo-me de uma decisão do ministro José Néri da Silveira, em
relação a um conflito de terras entre os Estados do Acre e de Rondônia.
Eu havia elaborado parecer favorável ao Estado de Rondônia, e o relator,
para decidir sobre aquele trecho de terra importante, que envolvia 30
mil habitantes, dos quais o Acre cuidava há muito tempo, transcreveu meu
parecer em seu voto. O Ministro dizia o seguinte: "Eu gostaria de
dar razão ao Estado do Acre, ele sempre cuidou da polícia, etc., mas o
que está no texto constitucional me obriga a decidir de acordo com a
lei, não com a minha preferência." Assim, ele garantiu as terras
para Rondônia, em conformidade com o artigo 14 do Ato das Disposições
Constitucionais Transitórias.
Durante o evento na FIESP, o Ministro Luís Roberto Barroso me disse mais ou menos o seguinte: "Professor,
quando nos trazem um problema que o Congresso não solucionou, temos uma
situação muito séria e precisamos resolvê-la. Às vezes, a solução não
encontrada pelo Congresso obriga-nos a decidir como acharmos melhor."
Apesar de nossa amizade, livros escritos em conjunto e respeito mútuo
nos debates, expliquei ao Ministro que a função de legislar é do
Congresso e, se ele agir mal, caberá aos eleitores elegerem novos
parlamentares, mas o papel do Poder Judiciário não é
legislar. Por mais que uma decisão humanista possa parecer necessária, o
juiz não pode decidir legislando. Hoje, vemos o Supremo Tribunal
Federal se auto outorgar poderes, decidindo de forma diversa do
Congresso, e, quando o Legislativo ou o Executivo não agem, o Supremo
intervém, conforme a visão autoformada de seus Ministros, o que, a meu
ver, apesar da qualidade intelectual dos magistrados, não é o que dispõe
a Carta da República.
Quem gosta de História, extremamente bem documentada no Velho Testamento, percebe que o pior
período de Israel foi quando governado por juízes. Se analisarmos
aqueles quase três séculos, veremos o grito do povo e a sensação de que
estavam sendo mal administrados, a ponto de irem ao profeta Samuel para
pedir um rei. Eles queriam ser como outros países e não aguentavam mais
os juízes. Apesar das considerações de Samuel de que os reis poderiam
ser piores, os juízes foram afastados.
É que os juízes não têm contato com o povo. Na democracia, os
eleitores escolhem seus representantes, enquanto os juízes, que passam
por concursos, não têm essa relação direta com a população. Dou muito
mais valor a um juiz de primeira instância, seja federal ou estadual,
que passa por um concurso exaustivo, do que a magistrados que, por
melhores que sejam, precisam fazer campanha de amizade e contar com
excelente relacionamento com o presidente da República.
Existem aspectos poéticos, líricos e românticos na ideia do
"notável saber jurídico". Não é algo que se equilibra simplesmente com
títulos de professor, doutor ou mestre, mas está muito além disso. A
verdadeira relevância não é a titulação, mas ser "amigo do rei". Um juiz
de primeira instância sofreu muito para chegar lá, enquanto um Ministro
precisa apenas ter boas relações com o presidente.
Hoje, no Supremo Tribunal Federal, temos três Ministros que
vieram da magistratura e oito que não vieram. São profissionais
competentes, mas amigos do presidente. Apesar de eu respeitar e admirar
esses Ministros, com alguns dos quais escrevi livros, essa mentalidade
tomou conta do nosso Poder Judiciário, gerando a insegurança jurídica e
as distorções que constatamos na excelente apresentação do professor
José Pastore, que não serão facilmente reformadas.
Carl Schmitt, em seu livro "Conceito do Político", dizia que as
ciências e artes são conhecidas pelas oposições. Na moral, estudamos a
oposição entre o bem e o mal; na estética, entre o belo e o feio; na
economia, entre o útil e o inútil; e na política, entre o amigo e o
inimigo.
O que Schmitt disse sobre o conceito de política, é verdade. No
meu livreto "Uma breve teoria do poder” demonstro que aqueles que
assumiram o poder,só podem ser dele afastados, porque não abrem mão do
poder. É o caso do Maduro, atualmente.
Nas democracias, o eleitor tem esse poder, mas nas ditaduras,
não. Quando um juiz assume o cargo, seja por concurso ou nomeação, ele
sabe que permanecerá lá e no momento em que se auto outorga poderes, é
difícil removê-los.
O trabalho nas faculdades e escolas é crucial para que uma nova
geração enfrente esse desafio. Aos 89 anos, essa luta não é mais minha,
mas de vocês. Este é o grande drama do Brasil e a verdadeira batalha que
enfrentamos. A essa altura, uma batalha que não será fácil. Há de
termos, entretanto, uma democracia com harmonia e independência dos
Poderes, cada um nos limites constitucionais que lhe foram concedidos.
Ives Gandra da Silva Martins é professor emérito das universidades Mackenzie, Unip, Unifieo, UniFMU, do Ciee/O Estado de São Paulo, das Escolas de Comando e Estado-Maior do Exército (Eceme), Superior de Guerra (ESG) e da Magistratura do Tribunal Regional Federal – 1ª Região, professor honorário das Universidades Austral (Argentina), San Martin de Porres (Peru) e Vasili Goldis (Romênia), doutor honoris causa das Universidades de Craiova (Romênia) e das PUCs PR e RS, catedrático da Universidade do Minho (Portugal), presidente do Conselho Superior de Direito da Fecomercio -SP, ex-presidente da Academia Paulista de Letras (APL) e do Instituto dos Advogados de São Paulo (Iasp).